– Ai, desculpa, moço. Não vi você e… Tião?
– Você pediu desculpas pela trombada, por me chamar de “Tião” ou por esse corte de cabelo?
– Pela trombada… O que tem meu corte de cabelo?
– Mariana, já te disse que odeio “Tião”. “Sebastião” é rústico, tradicional e criativo. “Tião” é nome de macaco de zoológico que rima com metade das letras daquele troço que você me fez ouvir no nosso último aniversário de namoro.
– Deixa eu pegar o meu espelho… O nome é funk, faz favor. E era divertido.
– O dono devia se divertir maravilhas. Enchia o lugar. Minha pele que reclamava um pouco de tanto que suava.
– Tião, um, dois e três: licença pra parar de reclamar hoje. O que tem meu cabelo?
– Não somos mais namorados. Você não pode usar esta prerrogativa.
– Claro que posso. Meu cabelo tá normal.
– Não.
– Está sim. Olha pro espelho.
– Não pode usar a licença se não estamos mais juntos.
– Você lembra de quando combinamos isso de licença?
– Sim. Foi na noite que nos beijamos pela primeira vez. Você pediu um restaurante ao luar.
– E você me levou no terraço daquele museu que seu amigo era diretor.
– Ainda estou devendo aquele favor… Espero que o alzheimer dele piore logo.
– Foi tão lindo.
– O Alzheimer ou a noite? A mulher dele também curte, mas…
– Eu amei.
– Claro que amou. Mas…
– Combinamos a licença antes do beijo.
– Eu sei, mas…
– E antes de te pedir em namoro.
– Você precisa lembrar que foi você que me pediu? Eu me sinto como se meus testículos fossem depilados e pintados de rosa quando lembro.
– Então a licença foi amizade. Não foi namoro.
– Não vou discutir. Estamos na Presidente Vargas e isso atrai mau agouro.
– Ai, Tião… O que traz mau agouro? Discutir?
– Não. O Vargas. O homem se matou com um tiro no peito porque não concordava com sei lá o que. Divergir de coisas aqui atrai suicídio.
– Tá bom. Para onde você está me levando?
– Eu estava indo para o metrô.
– Ah…
– E como está o “Carlão”?
– Ele está bem. Completamos dois anos semana passada.
– Que bom. As crises mais graves só chegam com três anos.
– Não começa.
– O quê? Isso é real. 86,4% dos relacionamentos entram em crise com três anos. Eu espero que vocês superem.
– Você sempre faz essas tiradas das suas histórias quando falamos sério.
– Estou falando sério. Me preocupo com você. Mas torço.
– Mesmo?
– Mesmo.
– Você foi o amor da minha vida.
– É por isso que você me largou? A sua vida era tão ruim assim?
– Eu te expliquei na época.
– Tenho dificuldades de entender mudanças súbitas como um peido numa piada. Ou um enfarte.
– Não sentia a mesma coisa…
– Chocolate estava aí para isso.
– Olha… Um Dia de Domingo
– Hoje é sexta. Você precisa arranjar um emprego.
– Não, seu bobo. Está tocando “Um dia de domingo”.
– Ah, música tocando alta no centro. Quem diria?
– É a versão do Tim com a Gal. A gente amava.
– Aposto que é uma loja de CDs que não respeitam direitos autorais.
– A gente dançou junto no casamento da sua sobrinha.
– Imagina o que o Vargas faria depois de uma reunião sobre copyright em dias de internet… Você tem alguma culpa? Aposto que ele usaria uma bomba ao invés de uma bala.
– Hã?
– Vargas, o presidente. Ele se…
– Para, Tião.
– Eu quis dizer… Culpa. Eu sei lá, as vezes eu acho que poderia ter feito algo.
– Você não podia.
– Jura?
– Sim. E nem eu.
– Mesmo?
– Sim. Mas sinto saudades.
– Também.
– Eu sou feliz pelo que tivemos. Foi um período lindo das nossas vidas e você é a pessoa mais maravilhosa que conheço. Tem gente que não tem isso a vida toda. Eu tenho 25 e já tive.
– Sou feliz pelo que tivemos. Foi mesmo um período maravilhoso. Mas tem gente que tem isso e morre. Eu tenho 60 e já tive. Não dá para ter mais muita expectativa no que resta…
– É por isso que não podemos ser amigos?
– Já te disse que podemos.
– Mas você não liga, não aparece e não responde whatsapp.
– Eu nem sei ligar esse troço no celular sem você do lado.
-Acabou.
– A gente? Já acabamos há um tempo.
– Não, a música.
– Ah, daqui a pouco começa outra. Aposto que colocam aquele Nelí, Nelly que você gostava.
– Eu vou ficar por aqui. Meu trabalho é ali.
– Você está trabalhando? Que maravilha!
– Obrigada! Começo hoje, na verdade. Vou trabalhar com aquela estilista que você me apresentou;
– A Natasha? Puxa vida, isso é ótimo. Ela bebe o dia todo e sempre coisas transparentes como água e vodca. É só você descobrir qual o dia do quê e lidar de acordo. Calma nos dias de vodca e firmeza nos dias da água. Não deixe ela chegar perto de um alvejante ou algo assim. Você vai se dar muito bem.
– Obrigada! Eu também acho.
– Bom, eu vou para o metrô. Então é isso. Olha, você sabe que não sou muito chegado a declarações…
– Tião… Sem piadas, por favor.
– Não é piada. É sério. Olha, adorei te rever.
– Eu também.
– Vamos fazer isso de novo. Lá em casa. Pode até trazer o “Carlão”.
– É Karl. Ele odeia esse apelido.
– Eu não sei nem pronunciar isso. “Carlo”, “Carla”,“Cal”…
– Hahahaha… Posso levar mesmo?
– Claro. Escuta, estou namorando também.
– Sério?
– Não é sério, mas é namoro. Ela também escreve. Mas são documentários.
– Você dizia para nunca confiar em documentaristas…
– E não confio. Mas olha, elas são apaixonantes. O nome dela é Juliana.
– Que bom. Quero conhecer ela. Vou indo.
– Sim, sim, não vou te atrasar em seu primeiro dia. Acho que quintas são dias de vodca. Leve um chocolate e uma coca pra ressaca dela.
– Ok. Tião?
– Oi?
– O que tem de errado com meu corte de cabelo?
– Nada. Era só uma piada. Desculpe, fique tranquila. Você está ótima. Sexta que vem lá em casa?
– Hahahaha… Bobo! Tá marcado! Tchau.
– Tchau.