Ela estava viva há mais tempo do que gostaria, mas estranhamente esqueceu disso naquele dia. Estava apaixonada. Remexeu os galhos com o vento e imaginou um sorriso em seu único orifício. Ele estaria sempre com ela, por onde fosse. O sol era lindo.
Todos os dias repetiria aquela história em seu ouvido enquanto dormia. Começou com apenas um nome. Depois uma frase e então uma sentença completa. Com o tempo proferia toda história no intervalo dos sonos daquela criança.
O menino cresceu e a história cresceu dentro dele, como um parasita que cresce em nosso corpo sem que tomemos conhecimento. Mas esse era um enredo sem final. Ele vivia sua vida, mas muitas vezes vivia para a história. Entrava e saía de situações das quais se esquecia, quando era um veículo para uma aventura em que protagonizava.
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Estou há muito tempo entre essa comunidade. Um século ou dois a menos do que a segunda em que mais convivi, mas o suficiente para saber como gosto dela. De tudo aqui o que mais gosto é uma frase que todos pronunciam como uma saudação saudável. “Você está no ponto hoje”. Ouço o tempo todo. Não importa quanto tempo você viva. Nenhuma vida faz você não lamentar a ausência de amigos ou pessoas educadas.
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O menino cresceu.
Levou algum tempo até que entendesse o que havia se tornado. Por duas vezes perdeu meses de vida sem que encontrasse qualquer explicação que não fosse lapsos de memória. Quando passou uma década em um piscar de olhos não se desesperou, embora fizesse esse tipo. Havia retido a coragem do herói que nunca havia sido, ou melhor, que havia nascido nele.
Mais do que isso: já se recordava de parte do roteiro que sempre era deletado de sua memória. Agora entendia o que era. Só não tinha certeza de quem era. O excesso de tempo vivendo uma aventura que nunca lembrava de ter desejado parecia confundir quais memórias eram realmente suas.
Levou algum tempo até entender que as fases da história estavam relacionadas a quantidade de tempo em que sumia do que chamava de mundo mundano. Capítulos mais longos daquele livro o levavam por décadas e os parágrafos mais curtos por alguns meses apenas. Estava na história que haviam plantado nele. Mergulhava naquela semente.
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Não tenho vergonha de dizer que decidi morrer.
Não foi uma decisão difícil. Você não se cansa de viver uma vida que não é sua, mas é estafante protagonizar duas histórias dessa forma. Uma jamais muda, mas vivo por séculos. E a outra é efêmera porque interrompo antes de criar laços ou perco entes queridos para o tempo, meu maior inimigo. Entendo que um imortal querer morrer faz tanto sentido quanto obesos que desejam emagrecer.
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Na sua mente, cada momento heroico vinha como em um livro. Mas tudo era dividido por capítulos em que os textos não possuía pausas. Sua história só tinha um único ponto de onde tudo recomeçava do zero. Era novamente um herói conhecendo o início da sua jornada, revivendo a perda de sua esposa e jurando de morte seus inimigos, que levaria décadas para destruir. Depois do primeiro século passou a achar engraçado os termos “vírgula” e “ponto final”.
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Tudo o que precisei foi falar com as pessoas certas. Não posso dar cabo da minha própria vida, mas consigo deixar que o façam. O dinheiro serviu para contratar um caçador de monstros ou simplesmente um assassino profissional. O combinado é que me mate neste banco onde estou. Basta um comando acordado. Tudo que preciso fazer é saudar aquele que me ver aqui.“Você está no ponto hoje”.
Sobre
Meu nome é Tiago Cordeiro e trabalho com conteúdo (textos, roteiro, ficção e não ficção) e digital. Atualmente, sou roteirista e sócio da Scriptograma.
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