O espírito do século XX se encontrou com o espectro do seu substituto durante o réveillon. XXI sempre olhou para o mais velho com respeito e alguma comiseração. Afinal, foram duas guerras mundiais e centenas de conflitos. Era o “último século da barbárie”, costumava dizer desde o início do seu ano Dez, 2010.

– Como vai, meu velho?

– Bem, meu jovem. Mas preocupado com você.

– Comigo? Mas ando tão bem… Apesar de um atentado aqui e outro acolá. Você sabe: coisas que o senhor me deixou para resolver, né?

– Não se esqueça que muitas delas foram consequência de séculos passados. Reclamava muito com XV sobre a mentalidade religiosa que deixou e que praticamente definiu as coisas sem que tivesse muito controle. Nós temos pouca influência sobre os homens que vivem em nosso ciclo.

– Sim, pouca. Mas alguma.

– Exatamente! Alguma! E você tem sido negligente com isto. Não percebe o ódio voltando? Você-sabe-quem-de-bigode-ridículo teria orgulho de coisas que anda se falando por aí sem nenhum pudor.

– Você está certo em quase tudo, meu velho. Exceto no “voltando”. Estas coisas continuaram lá mesmo depois que você usou sua influência para que perdessem a última grande guerra. Assim como XVI, XVII, XVIII e XIX não resolveram o ethos de quem acredita em messias, não posso solucionar questões que vivem com o homem desde sempre.

– Pode ser, mas…

– Não há “mas”, meu velho. Se outra grande guerra surgir não tenho como impedir. O máximo que posso fazer é ajudar quem pode vencer, mas receio que desta vez será mais difícil escolher o lado certo. E as bombas atômicas de hoje podem fazer com que isto não faça muita diferença…

XX se calou. Os jovens nascidos no fim de seu ciclo e amadurecidos no seguinte eram exatamente como XXI. Inteligentes demais e certos de tudo. E normalmente tinham razão em muita coisa, mas o excesso de confiança incomodava o espírito de um tempo onde a humildade era uma virtude talvez até superestimada. Refletiu um minuto antes de responder.

– Muito bem. Apenas me prometa uma coisa.

– Qualquer coisa que não seja acabar com a internet. Seria como você dar conta da eletricidade…

– Me prometa que nos minutos mais fatais de seu tempo você pensará naquilo que falamos quando lhe passei o Bastão de Tempo Presente: as pessoas terão uma chance. Não falo dos líderes, das marcas… Falo das pessoas reais. Aquelas que olham o céu no ano novo e têm esperança.

– Combinado. Mas lembre-se: elas também nos conduziram até aqui. Lhes darei esta chance até porque quero passar o Bastão para outro. Só que depende bem mais delas do que de mim. É como aquele sujeito eloquente do seu tempo dizia…

– “O silêncio dos bons”.

– Sim, é o que mais me preocupa.

XX assentiu silenciosamente. Os dois se calaram e olharam a queima de fogos em cada céu e torceram pelo futuro. Nem mesmo todos os espíritos de século poderiam adivinhar como XXII seria, mas tinham uma esperança em comum: que fosse melhor. E tivesse menos do que reclamar.

 

 

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escrito por tcordeiro
Meu nome é Tiago Cordeiro e trabalho com conteúdo (textos, roteiro, ficção e não ficção) e digital. Atualmente, sou roteirista e sócio da Scriptograma.

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