Os passos que dava em direção ao ponto de ônibus eram perfeitamente ritmados, não como um tambor, mas talvez fizessem som igual ao de um pilão. Os sapatos negros davam àquele que os usasse um aviso sonoro que precederia sua presença. Sim, os sapatos faziam bastante barulho ao bater no chão: “Tam, tam, tam”… muito mais ruidosos e lentos que qualquer cacofonia adivinda de instrumentos que não se usa mais.

Chame-o de José e ele não responderá. Mas, para facilitar as coisas, seu nome será José.

Pode-se dizer que aquele dia era uma segunda-feira cinza igual a todas as outras. Como de costume, José acordara cedo para tomar banho. Depois olhava-se no espelho e penteava os cabelos loiros (e quase brancos) e ralos (conservando ainda alguns cachos na altura da nuca). Seus olhos azuis, famosos em sua juventude, agora competiam com olheiras que chegavam com a idade. Após esse ritual sentava-se à mesa e olhava o jornal calmamente deliciando-se com a lentidão da leitura. A surdina matinal era seu isolamento acústico para se informar sobre as notícias do dia anterior. Tudo isso enquanto tomava o café da manhã. A leitura e o desjejum, contudo não o impediam de sair de casa com a mesma tranquilidade, para enfim, desfrutar de uma caminhada ociosa até o ponto de ônibus.

De fato, aquela segunda-feira era apenas mais uma segunda-feira. Exatamente como todos os dias ele caminhava para chegar ao mesmo ponto de ônibus ao invés de ir para o ponto final que ficava bem ao lado da sua casa. Algo no ato de ver o ônibus chegar ao invés de pegá-lo parado lhe atraía. A rotina daquele dia fora quebrada pelos três minutos de atraso que tivera. Não que isso o apressasse, tinha ainda cerca de quinze minutos até o ônibus chegar. Caminhava vagarosamente.

Ele jamais viu de onde ele estava vindo. Aquela figura surgiu em um segundo tão impreciso quanto a direção de onde viera. Era um menino que surgiu quase que do nada, já atravessando a rua de forma tímida, mas olhando fixamente nos seus olhos de forma decidida. Um pedacinho de gente, olhos azuis, cabelos loiros embaraçados e fartos. No corpo algo que mais parecia um pijama branco e, nos pés, botas pretas que martelavam o chão como um tambor: “tum, tum, tum”…

Algo naquele menino lhe dava um ar de majestade. Talvez fosse o cachecol roxo que parecia ser de seda e balançava ao vento, como um traje real:

– Oi – ele disse, subitamente – qual o seu nome ?

– Zé. Você não tem um casaco? Não está com frio?

– Você não perguntou meu nome. É falta de educação começar a conversar com alguém sem perguntar quem ele é.

– Desculpe, qual o seu…

– Eu já tive um casaco – ele emendou rapidamente, sem deixar José completar a pergunta – era azul por fora e vermelho por dentro. Tinha umas estrelas nos ombros, era muito bonito.

– Onde ele está?

– Deixei para trás. Era muito grande e pesado. Arrastava no chão e me deixava com muito calor.

– Arrastava no chão? Então não devia ser um casaco, devia ser um sobretudo. Você não é muito criança para ter um sobretudo?

– Você é velho e não usa um!- O menino respondeu em seco, rapidamente. Parecia irritado com a pergunta.

Aquilo lhe calou os pensamentos. Velho? Sobretudo? Algo naquelas poucas palavras confundia-lhe a mente. Não era só isso, conversar com o menino lhe deixava curiosamente constrangido. Olhou para o relógio “dez minutos” – pensou – “dez minutos que faltam para o ônibus”. Não podia perder a hora. O vento soprava mais forte e ele se arrependia de não ter trazido um casaco. Olhou para o pequenino e calculou que deveria estar com mais frio ainda. O fato de não demonstrar o fez concluir que ele já deveria estar acostumado, ou talvez viesse de algum lugar frio. De qualquer forma, o que lhe incomodava era o embaraço pesado que a situação lhe trazia.

– Eu conheço você? – Perguntou com malícia, achando o garoto familiar.

– Talvez, estou sempre por aqui – ele respondeu metendo a mão no bolso.

– Eu nunca vi você por aqui.

– Então você não enxerga! – Ele falou de forma ríspida, enfiando a mão mais fundo nos bolsos..

– Você é bastante mal-educado, garoto.

– Você é que é…

José percebeu como era sem sentido discutir com aquela criança. O ônibus talvez chegasse mais cedo e então ele poderia…

– Você quer brincar de pião comigo? – perguntou repentinamente o pequenino.

– O quê você disse?

– Brincar comigo. De pião… – Ele dizia com um ar de cansaço.

– Com pião não se brinca, se gira – retrucou com certa maldade, para irritar o menino.

– Tanto faz. Você quer? – Ele disse quase em tom de súplica.

– Não vejo nenhum pião aqui! – disse José secamente. Anos depois ele se perguntaria porque fora tão ríspido.

– Então você não enxerga! – disse o pequeno muito irritado, tirando a mão vazia do bolso.

Eram seis e cinco. Faltavam três minutos para o ônibus chegar no seu horário habitual. Três minutos daquela repentina e incômoda pequena presença. Percebeu em algum momento que o menino loiro lhe lembrava alguém. Um amigo de infância que havia se perdido? Talvez por isso teve um vislumbre de um momento da sua infância. Era um final de tarde e ele jogava com outras crianças, como ele havia sido. De repente, ficou de frente para o gol, pronto para desempatar e surgiu aquele beque enorme que disputaria a bola com ele. Qual era o nome daquele menino enorme? Não importava. Quase podia sentir a dor daquela dividida: a perna tremendo, o corpo calado, a queda indisfarçável, seguida do joelho raspando no concreto frio. Dor. Logo, saiu do jogo, não sem ouvir os apelos de um time que ficaria incompleto:

– Fica, José. Fica mais um pouco!

– Não. Já é tarde. Eu tenho que ir. – Dissera, disfarçando a dor.

O pensamento que tinha era de um onirismo quase palpável.

– Você está bem?  – Perguntou subitamente o pequenino.

– Sim… Eu estava pensando… Você não tem pais? Não é filho de alguém? – Ele disse, ainda embriagado pelas suas lembranças.

– Sou. Assim como você e qualquer um. – respondeu intrigado.

– Não é muito cedo para você brincar por aí?

– Não estou aí. Estou aqui – falou o pequenino, com um certo ar de malícia que até então não tinha demonstrado. Aprendera com José como ser irritante.

Nesse momento algo calou em seu coração. Uma vontade incontrolável de debater com aquele menino teimoso e encerrar suas falas redundantes para provar que aquele menino só queria chegar em um lugar: lugar algum. Sim, ia perguntar porque o menino estava ali e… O que mais? Qual era o nome dele? Sim, as perguntas iam se formando, tal qual quando começamos a descobrir uma charada.

– Seu ônibus está chegando? – perguntou o menino, esperando uma resposta.

Realmente. Bem distante, o 431 surgia, parando em um ponto de ônibus no início daquela longa rua.

– Sim, está mesmo! Depois nós conversaremos. Você vai estar aqui amanhã? – Perguntou com uma calma repentina.

– Vou. Mas você não vai voltar. É como todos os outros.

O ônibus estava chegando. Ele fez sinal e disse:

– Eu voltarei, amiguinho. Você vai ver, eu prometo! – Falou dando três tapinhas na cabeça do menino de cabelos loiros e encaracolados. Percebeu que gostava do pestinha.

O menino nada disse. Apenas concedeu-lhe um aceno triste e um olhar que parecia de pena. Não sabia se o menino pedia algo com o olhar ou se ele dava atenção demais àquela situação tão estranha para ele. A cena do jogo de futebol lhe retornou à mente. A dor, o medo da queda e o joelho rasgando como uma cortina de seda. Uma mão em seu ombro lhe cortou o pensamento. Era o trocador que disse:

– Oi patrão! Bom dia! Só pra te avisar que a partir de amanhã o ônibus não passa mais aqui. O senhor vai ter que pegar o ônibus no ponto final.

– No ponto final. – Balbuciou ele, como quem acorda de um transe.

– É patrão… O senhor ao invés de andar até a rua Antoine vai caminhar até a Praça do Ouvidor. O senhor entendeu agora?

– Sim. Eu entendo agora! – Ele respondeu com um olhar ambíguo de vazio e emoções que não se completavam. Entendia, mas com um abismo que não cabia em seus olhos.

escrito por tcordeiro
Meu nome é Tiago Cordeiro e trabalho com conteúdo (textos, roteiro, ficção e não ficção) e digital. Atualmente, sou roteirista e sócio da Scriptograma.

Os comentários estão fechados.