Deitou-se no divã desconfortável buscando esquecer. O chinês lhe trouxe o ópio que aspirou com força, querendo sair logo de si. Porém com o escapismo veio os sonhos que se confundiam com lembranças. Tropeçou na memória de cada rosto que traiu.
O melhor amigo que morreu com choques, o que torcia para o mesmo time e não resistiu ao espancamento e o terceiro, irreconhecível diante das queimaduras no rosto. Desapareceu daquele réquiem e reapareceu em seu apartamento. Beijou o rosto da mulher que mais amou na vida antes de vê-la pela última vez. Agradeceu a Deus ser a última lembrança que tinha dela, o que lhe confortava mais do que perturbava. Amaldiçoou ser uma memória tão curta enquanto se via no telefone. A viagem onírica tornou possível perceber o toque do aparelho para o qual ligava. A mão pegando o gancho e declamando a marcha fúnebre de sua alma: “alô?”, dizia o seu contato na polícia.
Vagou novamente para si mesmo do outro lado da linha em outra ocasião. Sua voz tinha cinco anos, três traições e um esquecimento a menos. Uma manhã de domingo quando não precisava de delírio para a vida ser suportável e combinava um almoço com alguém que gostava de conversar. Os olhos doíam com o sol assim como a luz do cômodo. A velha coluna latejando, a unha do chinês arranhando seu braço e a senha que lhe trazia de volta a si: “acorde. Estão procurando você lá fora”. Entendeu que corria perigo e por um segundo pensou em pedir que lhe escondessem dentro do próprio narguilé.
Mas foi só por um segundo. A dor na lombar, o instinto de sobrevivência e seu subconsciente lhe levando a fugir. Agir ainda era um delírio tão eficiente quanto qualquer outro para que deixasse tudo para trás. Saiu pela porta dos fundos da casa e escondeu tudo em um arrepio na nuca. Era noite e chovia.
“Quem vai te reconhecer assim?”, pensou. “Até depois”, disse ao se despedir do amigo chinês e de si mesmo.